Populismo da mídia tenta linchar procuradoras de Justiça de Goiás

04/06/2023 18:17:12

Texto Euler de França Belém

No início do livro “O Jornalista e o Assassino” (Companhia das Letras, 176 páginas, tradução de Tomás Rosa Bueno), a jornalista e escritora Janet Malcolm (1934-2021) assinala: “Qualquer jornalista que não seja demasiadamente obtuso ou cheio de si sabe que o que ele faz é moralmente indefensável”.

O que é uma reportagem senão um recorte, por vezes impreciso, da realidade. O repórter vai às ruas, observando diretamente um fato, ou então recorre a uma fala exprimida na internet e, sem buscar nuances, conta “sua” história. Daí corre para o abraço, quer dizer, para verificar a audiência. Quanto mais polêmica a matéria (ou o artigo), portanto excessiva, mais obtém acessos. Nas redações se diz, com certa volúpia amoral, mais ou menos assim: “Estamos bombando”.

Feito o “estrago”, por assim dizer, na vida das pessoas, que ficarão com suas imagens manchadas, os repórteres esquecem o assunto e se voltam para outros temas, igualmente escandalosos. É como se não houvesse nenhuma responsabilidade com aquilo que se publica.

Há uma forma clássica de se eximir de buscar nuances, de ampliar o entendimento de um assunto. Ao final das reportagens, nós, repórteres, escrevemos: “Machado Ramos Rosa foi procurado e não foi encontrado”.

Por que algumas pessoas, mesmo quando têm razão, preferem não se expressar, deixando de apresentar sua versão dos fatos? Porque sabem, decerto, que aquilo que dirão não será útil para esclarecer a questão, e sim para produzir a ideia de que a reportagem é precisa, pois ouviu os dois lados.

Pintura de Remedios Varo

O jornalismo deveria trabalhar mais com a dúvida, mas o modelo dominante é altamente conclusivo e apressado — o que, em regra, impede o entendimento ampliado de um fato. “Se nós não dermos, outro jornal dará e nós seremos furados” — ouve-se nas redações. Aí, por receio da competição, excede-se. (Não estou falando apenas dos outros, mas também de mim.)

O esclarecimento de quem se sente “agredido” serve mais para ampliar a “denúncia” do que para gerar nuances e levar os leitores a questionarem o que foi apresentado. Por isso, aparentemente, muitos indivíduos se recusam a ser cúmplices do espetáculo dos linchamentos públicos.

Fala-se no populismo político, como se o populismo fosse um fenômeno tão-somente da política. O jornalismo passou por uma fase de apuração rigorosa, depois de ter escapado, em parte, do jornalismo dito “marrom”. Porém, com a internet, jornais e sites sensacionalistas irmanaram-se. Há espaços de decência, portanto de resistência, em alguns jornais. Entretanto, o jornalismo atual, com exceções, é uma volta ao passado — a do sensacionalismo excessivo.

Pintura de Claude Cahun

A escola do ressentimento: o eterno retorno

O Brasil não é, evidentemente, um país nórdico. Portanto, há diferenças salariais abissais. É a realidade e os que ganham mais são, por vezes, execrados, como se fossem culpados de alguma coisa. Como desconsiderar que são trabalhadores (muitos deles, como promotores e juízes, levam trabalho para fazer em casa)?

Não deixa de ser um direito dos que ganham mais reivindicar aumento salarial (ou simetria). É um direito. Dado o populismo, daqueles de cima que querem falar pelos de baixo (apropriando-se de sua fala) — vários jornalistas ganham acima de 100 mil reais e alguns chegam a receber mais de 1 milhão de reais por mês —, eventualmente pega-se alguém para, digamos, “Cristo” quando escorrega numa fala que, nada politicamente correta, é um pasto fabuloso para as manchetes e, em seguida, para conversas nos botequins (as redes sociais, ruas insurgentes, são botequins virtuais).

Pintura de Tommy Ingberg

O jornalismo, quando busca ampliar as sensações, serve não apenas ao populismo, às tentativas de ajustes sociais históricos. Ao reforçar ressentimentos, ele também contribui para “linchar” pessoas de bem, com uma história de luta pela melhoria da sociedade.

As procuradoras de Justiça de Goiás Yara Alves Ferreira e Silva e Carla Fleury de Souza, do Ministério Público do Estado — por sinal, um dos melhores do país (há problemas? Há, mas nada grave) —, foram execradas em várias reportagens de jornais e emissoras de televisão. Carla Fleury de Souza é a mais “linchada” pela violência tradicional (com viés classista) que se usa contra as mulheres.

Nenhum dos jornais que “lincharam” as duas procuradoras de justiça se deu ao trabalho de investigar quem elas são, qual é a história de cada uma na defesa dos direitos da sociedade. Não há uma linha a respeito do trabalho das duas. Senti, não apenas nas entrelinhas, certo preconceito resistente contra as mulheres, notadamente Carla Fleury de Souza, sobretudo por ter falado em brincos, pulseiras e sapatos (leia adiante).

Pintura de Igor Morski

Yara Alves Ferreira e Silva e Carla Fleury de Souza são mulheres íntegras, com um trabalho competente em defesa da sociedade, notadamente daqueles que estão, não no topo, e sim na base da pirâmide. Elas têm uma história, porém, como foram avaliadas por frases, e não pela média — que é como se deve avaliar uma pessoa, seja procuradora de Justiça ou não —, foram execradas nacionalmente.

Qual o “grande pecado” de Yara Alves Ferreira e Silva e Carla Fleury de Souza?

Na 5ª Sessão Ordinária do Colégio de Procuradores de Justiça de Goiás, Yara Alves Ferreira e Silva e Carla Fleury de Souza reclamaram, com base na legalidade, do salário da categoria.

O que Yara Alves Ferreira e Silva, assim como Carla Fleury de Souza, discutiu foi a questão da simetria salarial no Estado (afinal, delegados e juízes podem ganhar mais?). “Estamos hoje em uma situação de pires na mão. Humilhados e agachados diante de todos os servidores de carreira jurídica do Estado.”

Pintura de Mike Davis

Mulher decente, com uma história extraordinária no MP de Goiás — no qual trabalha há mais de 30 anos —, Yara Alves Ferreira e Silva acrescentou: “Se a situação é ruim para todos nós, imagina para eles” (referência aos servidores do MP que entraram em greve).

A fala da procuradora sugere que está preocupada com o salário, com a dignidade do salário seu e de seus pares. Mas não há na sua fala nenhuma proposta de corrupção. Pelo contrário, o que Yara Alves Ferreira e Silva está clamando é pelo cumprimento da legislação. Pelo respeito às regras.

A cereja do bolo que produziu o “escândalo” foi uma fala da procuradora Carla Fleury de Souza, que, ao reclamar de seu salário de 37,5 mil reais, disse: “O meu dinheiro é só para eu fazer as minhas vaidades, graças a Deus. Só para os meus brincos, pulseiras e meus sapatos”.

Deu-se a impressão de que Carla Fleury de Souza é uma dondoca, o que não procede. Na verdade, a procuradora disse, mas o complemento não foi levado em conta pela imprensa, que os promotores mais recentes não recebiam os atrasados que os demais recebem.

Pintura de Igor Morski | Foto: Reprodução

Carla Fleury de Souza nem reclamou do próprio salário, pois estava fazendo a defesa de seus colegas mais jovens, os promotores. Mas, com uma frase — de fato, infeliz, mas que, por vezes, se diz para ilustrar uma conversa —, retirada do contexto, ganhou o opróbio do país. A respeito da integridade pessoal e profissional da procuradora, que é um fato, nenhuma linha.

Os brasileiros precisam ter salários dignos — portanto, é preciso trabalhar pela constituição de uma sociedade mais justa. Mas operar para melhorar os salários dos pobres e da classe média não deve levar ao linchamento dos que ganham mais e cobram tão-somente o cumprimento da legislação. A destruição de reputações — com flechadas verbais —, se é decisiva para aumentar o ressentimento social, não cria a “sociedade de iguais”.

Felizmente, a reputação das procuradoras Carla Fleury de Souza e Yara Alves Ferreira e Silva é sólida e resistirá às intempéries do massacre do jornalismo sensacionalista. Os petardos geram certo desconforto, até pela injustiça do que se disse (insista-se: sem nuances), mas as duas mulheres — e é curioso que nenhum homem tenha sido citado —, pela história de cada uma, sairão mais fortes do embate. Porque, como disse o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, aquilo que não nos mata nos fortalece.

Fonte: Jornal Opção

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