Os cavalos da justiça

08/12/2021 21:46:40

Antigamente, na roça, grande parte dos negócios realizados pelos cidadãos de bem, na área econômica, aconteciam ora na casa do vizinho, ora na venda do povoado, ora à beira de uma estrada qualquer, quando eventualmente se encontravam. Até porque as pessoas não tinham lá muita pressa para fazer as coisas. Tudo ao seu tempo, sem agredir os bons costumes, a saúde e a boa convivência com os amigos. 

E a condução mais conhecida e mais utilizada por quase todo o mundo era o cavalo. Quem tinha uma besta marchadeira e boa de sela, principalmente se estivesse exibindo uma arreata caprichada, cantava de galo por todo o canto em que passava e deixava muitos invejosos olhando de rabo de olho e fazendo cara feia.

Por falar em amigos, quando dois compadres davam de se encontrar, em alguma encruzilhada permaneciam horas e horas papeando e falando da vida alheia, cada qual esganchado no arreio de seu animal. Nem apeavam. Pitavam o tempo todo. Pitavam pito de palha e cuspiam o quanto dava. Só iam embora quando esgotava o assunto e o cansaço começava a perturbar.   

Voltando ao assunto das costumeiras negociatas, rolava gambira de todo jeito e de tudo quanto era mercadoria. Entravam nas negociações: uma banda de capado, uma porca parideira, dois bezerrinhos ainda mamando, para serem entregues quando desmamassem; dois sacos de arroz com casca, ficando a entrega para quando terminasse a colheita; uma égua marchadeira, um saco de feijão e assim por diante. 

Pagamento? Era o de menos. Tudo na base da confiança. Na roça não era lugar de caloteiro. Ninguém queria ver seu nome mal falado, com fama de mau pagador.

Por isso não era preciso papel assinado nem testemunha. Um sinal feito a facão em uma árvore de beira de caminho bastava. Ou um fio de cabelo arrancado na hora e entregue ao credor, para ser resgatado na hora que efetuasse o pagamento. Pronto, isso era suficiente para garantir o cumprimento da obrigação assumida naquele momento.

O lado cômico da atividade desses comerciantes eventuais era fazer bom negócio, para ser visto na sociedade como gambireiro inteligente, esperto e de respeito. E coitado do outro, que fazia um mau negócio e era passado para trás. Este, sim, tornava-se vítima de zombaria. As pessoas ironizavam, dizendo: “Fulano é um trouxa mesmo, tomou uma bucha de rachar!”. 

Certa vez, campeando umas bezerras sumidas, o pai chamou o filho e apontou com o dedo indicador:

— Tá vendo o lavrado naquele pau-terra?

 Com a afirmativa do menino ele prosseguiu:

— Pois é, fui eu que fiz. Foi quando comprei duas vacas do compadre Apolinário. O lavrado era a garantia do negócio. O trato era pra pagar no fim do mês: paguei antes do vencimento. Quero que siga o exemplo, meu filho!

Sobre os cavalos da justiça, história que nos propusemos a contar, aconteceu que certo senhor apresentou ao juiz uma nota promissória, para ser executada, pois o devedor não queria pagar de jeito nenhum. 

Documento bom, apto à execução. O devedor não demonstrava vontade de quitar o débito, apesar de ser cobrado insistentemente. Não pagava nem a custa de promessa. Homem de palavra: falava que não pagava e não pagava mesmo.

Alegava o credor: “Não é nem tanto pelo valor da dívida, que não é grande coisa, mas muito mais pelo desaforo. Comprar e não pagar é uma forma indireta de pegar o alheio, não é verdade?”, desabafava.

Promovida na justiça a execução, o devedor, comerciante astuto na compra e venda de animais viu penhorados, para garantia do débito, dois cavalos cujos valores bastavam para cobrir o principal e os juros. E o encargo de depositário recaiu no oficial de justiça, um senhor já passado dos sessenta, que, se ainda estava no batente, era porque aguardava o deferimento de sua aposentadoria, para viver tranquilo o resto da vida.

O depositário fiel levou os tais cavalos para um pequeno pasto, ali perto, onde eram vigiados diuturnamente. Mesmo assim, num cochilo da vigilância, os equinos desapareceram. Sumiram do mapa, isto é, do pasto. O empregado da justiça ficou aflito, posto que a responsabilidade pela guarda dos bens gravados de penhora era toda sua e de mais ninguém. E saiu imediatamente no encalço dos fujões. Campeou por toda a vizinhança, indagando aqui e ali, e nada. Ninguém dava notícia. 

Mas cadê os desaparecidos? Não deviam estar muito longe. Talvez em alguma restinga ou beira de córrego. Será que algum amigo do alheio não passou por lá e não surrupiou os tais cavalos? Será que essas pessoas não respeitam nem a justiça mais?

De sua parte, o credor queria porque queria receber o que lhe era devido; o devedor, por sua vez, alegava que já havia entregado à justiça todos os bens de que dispunha para a quitação do débito: os cavalos. E aí? Estava formado o impasse. Será que esse desconforto seria debitado na conta do pobre do oficial de justiça? 

Diante desse fato, o juiz ordenou ao depositário que promovesse diligências mais eficientes, a fim de encontrar os cavalos o quanto antes e a qualquer custo. Tudo em nome da lei.

O oficial, coitado, era só desgosto e consumição. Já não conseguia trabalhar direito nem dormir bem à noite. Sonhava com os benditos cavalos e acordava várias vezes com pesadelos horríveis. 

“Não é justo o que estão fazendo comigo!”, reclamava. “A vida inteira trabalhando duro, honestamente, e agora que vou me aposentar, veja o prêmio que recebo!… Inda correndo o risco de ter que pagar a conta e, mais ainda, de ir pra cadeia, pode!”, lastimava o oficial da lei.

Contudo, para alegria de todos, um mês depois os cavalos foram recapturados em outro município, uns vinte quilômetros de distância. Ninguém conseguiu descobrir como foram parar em local tão distante.

O juiz chamou as partes e intermediou um acordo, para evitar mais transtornos aos interessados. O devedor pagou a dívida e resgatou os cavalos.

Alguns anos decorridos, o advogado do devedor encontra novamente aquele mesmo oficial de justiça, que nunca deixou de ser seu amigo, apesar de tudo, e não conteve a vontade de tocar no assunto:

— E os cavalos, Zé?

— Moço, nem me fale em cavalo! Tomei verdadeira birra do tal animal. Prefiro andar a pé.

Olhou-o de esguelha, pensou, esboçou um sorriso maroto e lascou: 

— E de advogado também! Ô classe de gente custosa! 

Riu um instante, depois completou:

— Mas a verdade tem que ser dita: por causa daquela história, fiquei tão oprimido que o próprio juiz, de dó de mim, interferiu a meu favor e apressou o meu processo de aposentadoria. Foi a única coisa boa que aconteceu na malfadada história dos cavalos da justiça.

Escrito por Elson Gonçalvez

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